Puxe a cadeira, pegue um café e vamos direto ao ponto.
No Expresso Político de hoje vamos fazer uma análise detalhada dos argumentos favoráveis e contrários à proposta, e seus possíveis efeitos legislativos e sociais.
O PL 1904/2024, apelidado de “PL do Estupro”, chegou ao centro das discussões no Congresso após ser aprovado em regime de urgência pela Câmara em junho de 2024 . A proposta altera o Código Penal para equiparar o aborto após 22 semanas de gestação — mesmo em casos de estupro — ao crime de homicídio simples, com pena de 6 a 20 anos à gestante e aos profissionais de saúde envolvidos .
Esse projeto desencadeou uma reação rápida no Parlamento e na sociedade, com protestos de feministas, organizações de direitos reprodutivos e movimentos pró-vida. As atenções se voltaram para o impacto que uma mudança tão rígida pode ter na saúde pública, na segurança das mulheres e na polarização política nacional .
O objetivo deste artigo é apresentar um panorama crítico e equilibrado:
analisar os aspectos legais que o PL modifica;
avaliar os argumentos a favor e contra, sob perspectivas jurídicas, sociais e morais;
mapear os efeitos esperados para o sistema de saúde, as políticas públicas e a sociedade.
A proposta exige um olhar técnico e político: entender o real alcance dessa restrição legal e os riscos que podem advir de sua aprovação sem ampla reflexão pública.
O que prevê o PL 1904/2024 📋
🔍 Alterações propostas pelo texto
O PL 1904/2024 propõe uma mudança drástica no Código Penal: para gestações acima de 22 semanas, mesmo em casos de estupro, o aborto seria equiparado ao crime de homicídio simples, com pena de 6 a 20 anos de reclusão para a gestante e para o profissional de saúde envolvido. Antes desse limite, permanecem as regras vigentes: detenção de 1 a 3 anos para a mulher e reclusão de 1 a 4 anos para quem provoca o aborto com consentimento, ou 3 a 10 anos sem consentimento .
Além da punição, o projeto inclui critérios para redução ou perdão da pena pelo juiz, com base em circunstâncias individuais — mas não retira o escopo punitivo geral .
🎯 O que muda — o que permanece
aborto sem condenação para salvar a vida da gestante, em caso de anencefalia fetal ou gravidez resultante de estupro — desde que dentro do prazo de 22 semanas .
após 22 semanas — mesmo em hipóteses permitidas — o procedimento passa a configurar homicídio, aumentando drasticamente a penalização .
Possível revitimização: aloca à vítima de estupro o risco de enquadramento criminal grave — com pena maior que a aplicada ao estuprador em muitos casos .
⚖️ Comparativo com o marco legal atual
Atualmente, o aborto é imune de punição legal em três situações: risco à vida da mãe, anencefalia fetal e estupro, sem limite gestacional explícito . A Lei 12.845/2013 normatiza o atendimento da mulher vítima de violência sexual no SUS, sem impor prazos para autorização do aborto .
O PL, portanto, altera profundamente essa realidade, inserindo um corte temporal que pode criminalizar a mulher vítima mesmo em casos já previstos por lei – uma mudança que também contraria conceitos adotados pela Organização Mundial da Saúde e boa parte das legislações contemporâneas .
O PL 1904/2024 cria um marco legal restritivo e punitivo extremo, impondo a pena de homicídio a mulheres e profissionais de saúde que realizem aborto após 22 semanas — ainda que autorizados por lei. Essa proposta altera significativamente o equilíbrio entre direitos reprodutivos, saúde pública e justiça penal, configurando um tensionamento intenso entre o marco legal atual e os princípios constitucionais.
Argumentos a favor do aborto legal em casos previstos e do direito à autonomia reprodutiva
🧬 Direito à autonomia e dignidade da mulher
Defensores da legalização do aborto até as 22 semanas — especialmente em casos de estupro — argumentam que o direito à interrupção da gravidez está diretamente ligado à dignidade humana, à autonomia corporal e à saúde integral da mulher. A criminalização nesses contextos é vista como forma de revitimização, forçando a continuidade de uma gestação indesejada sob trauma e violência, o que contraria os princípios constitucionais de liberdade e proteção à saúde.
🩺 Saúde pública e redução de danos
Estudos de órgãos como o Ministério da Saúde e a Fiocruz mostram que a clandestinidade do aborto resulta em complicações médicas, internações e até mortes evitáveis. Ao limitar o acesso a procedimentos seguros — especialmente para mulheres pobres, pretas e periféricas — o Estado cria uma dupla penalização: a do crime e a da desigualdade estrutural. Garantir o aborto legal e seguro reduz internações por complicações, desafoga o SUS e diminui custos sociais associados à judicialização e à mortalidade materna.
🌍 Alinhamento com padrões internacionais
A Organização Mundial da Saúde recomenda que o aborto seja legalizado, seguro e acessível pelo menos até a 22ª semana em casos como estupro, risco à saúde da gestante ou malformações do feto. Países democráticos como França, Alemanha e Canadá adotam esse limite ou maior, priorizando direitos humanos e autonomia das mulheres. A proposta do PL 1904/2024, ao contrário, caminha em direção oposta: trata o aborto legal como homicídio, mesmo quando há respaldo jurídico e médico.
📊 Base científica e técnica
Sociedades médicas e psicológicas, como a FEBRASGO e o CFP (Conselho Federal de Psicologia), alertam que o trauma da violência sexual exige tempo para ser processado — muitas mulheres sequer descobrem ou aceitam a gestação nas primeiras semanas. Imposição de prazos rígidos ignora as complexidades emocionais, sociais e clínicas desses casos. O prazo de 22 semanas é considerado um padrão técnico mínimo para garantir o cuidado adequado sem violar os direitos da mulher.
Os argumentos a favor da legalidade do aborto em casos previstos pela lei — inclusive após 22 semanas — estão baseados em princípios de dignidade, saúde pública, proteção à mulher e alinhamento com normas internacionais. O endurecimento proposto pelo PL 1904/2024 compromete esses fundamentos, substituindo uma abordagem de cuidado por uma lógica de punição.
Argumentos contrários ao aborto legal após 22 semanas
✝️ Perspectiva moral e religiosa
Setores religiosos — especialmente os cristãos conservadores — argumentam que a vida humana começa na concepção e, portanto, qualquer forma de aborto representa a interrupção de uma vida em desenvolvimento. Para esses grupos, o valor da vida é absoluto e não pode ser relativizado por circunstâncias, mesmo em casos de estupro. A proteção do feto seria, nessa lógica, uma obrigação ética inegociável do Estado e da sociedade.
👶 Defesa da vida como princípio constitucional
Os opositores do PL 1904/2024 sustentam que a Constituição garante o direito à vida como fundamento do Estado brasileiro. Assim, legislações que permitiriam a interrupção da gestação após determinado período violariam esse princípio. A criminalização do aborto após a 22ª semana é, portanto, entendida como uma medida necessária para garantir que esse direito não seja restrito à mulher, mas estendido ao feto como indivíduo em potencial.
⚠️ Temor da banalização e uso indevido
Críticos do aborto legal argumentam que a flexibilização da lei poderia levar à “banalização” do procedimento. Alegam que, sem controles rígidos, o aborto deixaria de ser exceção e passaria a ser visto como método contraceptivo, afetando valores sociais e o senso de responsabilidade individual. A proposta de punir com rigor procedimentos feitos em fetos com mais de 22 semanas se justificaria como forma de preservar a gravidade do ato.
🧪 Desconfiança de critérios médicos e psicológicos
Grupos contrários também questionam a subjetividade dos laudos que autorizam abortos legais, especialmente quando há base psicológica envolvida. O receio é de que essa brecha possa ser usada para justificar abortos em situações que não representariam risco real à saúde ou em casos em que a gestação não decorre de violência. Assim, a criminalização severa serviria como freio para o que veem como “judicialização liberalizante” do aborto no Brasil.
A oposição ao aborto legal — especialmente em estágios mais avançados da gestação — se baseia na defesa incondicional da vida, em valores morais e religiosos e em preocupações com eventuais abusos na interpretação da lei. Para esses grupos, o PL 1904/2024 é um marco de proteção fetal e uma resposta à insegurança jurídica e moral gerada pela atual legislação permissiva.
Impactos legislativos e políticos 🏛️
🔍 Repercussão em bancadas e grupos
A aprovação em urgência do PL 1904/2024 provocou forte mobilização política. A bancada evangélica reagiu com defesa pública, interpretando o projeto como “vitória dos cristãos” e “mão de Deus sobre o Brasil” . Já movimentos feministas e de direitos humanos, incentivaram campanhas massivas com hashtags como #PL1904Não e #CriançaNãoÉMãe, cuja pressão ajudou a adiar a votação .
🏗️ Estratégias em comissões e plenário
O texto ganhou regime de urgência, dispensando análise inicial nas comissões e indo direto ao plenário . Em seguida, foram propostas audiências públicas, incluindo no âmbito da Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família — sinal de uso estratégico das comissões para mitigar críticas e tentar legitimar o projeto tecnicamente.
🧩 Jogadas táticas e adiamentos
Diante das reações adversas, líderes cristãos admitiram adiar a votação para consolidar apoio e evitar desgaste eleitoral . O presidente da Câmara decidiu postergar definição de relator e votação para o fim do ano, provavelmente após as eleições municipais .
🔧 Possíveis emendas, vetos e construção política
Estudos de constitucionalidade, como o da OAB, apontam inconstitucionalidades no projeto , fornecendo base para potenciais contestações jurídicas. A inclusão de emendas ainda é possível nas comissões, seja para restringir o escopo ou adaptar os termos do projeto. Enquanto isso, o Executivo sinalizou atuação para barrar a proposta no Congresso .
O PL 1904/2024 demonstra como temas sensíveis são usados como bandeiras político-ideológicas: o lobby evangélico obteve vitória simbólica com a urgência, enquanto movimentos contrários conseguiram adiar a votação. A forma como o texto avança por comissões, poderá ser pivotado por emendas ou vetos. O embate político, jurídico e societal mostra que o projeto — longe de ser mera alteração legislativa — tornou-se campo de disputa intensa na política nacional.
Repercussos na sociedade 🌐
🤰 Grupos pró-vida e pró-escolha
O PL 1904/2024 mobilizou intensamente tanto movimentos pró-vida quanto pró-escolha. Enquanto organizações conservadoras celebraram a proposta e usaram sua lógica punitiva como instrumento moral, entidades feministas e de direitos reprodutivos reagiram com força. Plataformas como Saúde É Pública da USP condenaram o PL como um “retrocesso que ignora os direitos sexuais e reprodutivos da mulher” . Já a Fiocruz divulgou uma nota oficial alertando que o projeto representa uma “ameaça à saúde de mulheres e meninas” .
📣 Mobilizações online e ações de rua
Redes sociais viraram palco de campanhas virais: hashtags como #CriançaNãoÉMãe, #PLdoEstuproNão e #PL1904Não tornaram-se trending topics, impulsionando mobilizações digitais coordenadas por perfis feministas, ativistas e fãs de artistas conhecida (@Anitta, BTS, etc.) . Paralelamente, houve protestos em várias cidades — incluindo em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro — com faixas que alertavam: “Estuprador não é pai” e “Criança não é mãe” .
📰 Papel da mídia e do debate público
A mídia tradicional repercutiu amplamente os protestos e o rito de urgência da proposta. A Folha de S.Paulo destacou indignação da sociedade, enquanto colunistas como Miriam Leitão classificaram o projeto como “retrocesso medieval” . A oposição midiática ajudou a pressionar o Legislativo, resultando no adiamento da votação .
Os reflexos do PL 1904/2024 extrapolaram o Congresso: geraram um amplo movimento social, online e presencial, e colocaram o aborto no centro da atenção nacional. O embate entre narrativas — de proteção materna contra a criminalização — revelou uma polarização intensa e colocou em evidência a importância de debates públicos e bem-informados sobre políticas de saúde e direitos humanos.
Possíveis cenários futuros 🔮
✅ Aprovação do PL 1904/2024
Se o projeto for aprovado tal como está, o Brasil pode testemunhar um recrudescimento no acesso ao aborto legal, especialmente para meninas e mulheres vítimas de estupro. A criminalização de procedimentos após 22 semanas poderá levar a:
Aumento dos abortos clandestinos, com alto risco à saúde pública.
Judicialização de casos extremos, com pressão sobre o Judiciário.
Estigmatização de vítimas, incluindo menores que engravidaram após violência sexual.
Além disso, o país pode sofrer sanções ou críticas internacionais por violar tratados de direitos humanos dos quais é signatário.
❌ Rejeição total do projeto
Caso a pressão social e institucional leve ao arquivamento ou rejeição total da proposta, o Brasil manterá seu marco atual, que permite o aborto em casos específicos (estupro, risco à vida e anencefalia). Este desfecho pode:
Reforçar o protagonismo de movimentos feministas.
Reposicionar lideranças políticas moderadas.
Gerar frustração em setores religiosos e conservadores do Congresso.
⚖️ Acordo intermediário
Outro cenário possível é a modificação do texto para limitar punições ou garantir exceções explícitas — como idade mínima, tipo de violência ou tempo de gestação. Esse “meio-termo” busca:
Reduzir o custo político da proposta.
Atender parcialmente os apelos das frentes religiosas.
Aplacar críticas de organizações de saúde e direitos humanos.
🗳️ Cenário político e eleitoral
Independentemente do desfecho legislativo, o PL 1904/2024 entrará na pauta eleitoral de 2024 e 2026. Candidaturas de viés conservador devem explorá-lo como sinal de “defesa da vida”, enquanto progressistas o usarão como alerta contra retrocessos. O tema tende a ser combustível para:
Polarização moral em debates eleitorais.
Promessas de revogação ou endurecimento conforme o espectro ideológico.
Maior vigilância do eleitorado sobre as posições de cada parlamentar.
O destino do PL 1904/2024 ainda está em aberto. Seja qual for o desfecho, seu impacto já é real: acirrou posições, mobilizou a sociedade e reacendeu o debate sobre direitos reprodutivos no Brasil. Cabe aos cidadãos acompanhar os próximos capítulos com atenção e exigir clareza, responsabilidade e empatia nas decisões dos representantes.
Conclusão 🧭
O PL 1904/2024, ao propor alterações profundas nas condições legais do aborto no Brasil, reacendeu um dos debates mais delicados da política nacional. De um lado, os defensores da proposta invocam argumentos de proteção à vida e valores morais; de outro, seus críticos apontam violações à dignidade humana, à saúde pública e aos direitos das vítimas de violência sexual.
A polarização expôs fragilidades institucionais: o atropelo do debate técnico, a ausência de escuta às entidades especializadas e a tentativa de capturar politicamente um tema que exige empatia e responsabilidade. Independentemente de convicções pessoais, a legislação deve ser pensada à luz de princípios democráticos, científicos e de proteção às populações vulneráveis.




