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No Expresso Político de hoje vamos falar da proposta que dividiu opiniões: para um lado é necessário proteger a vida; para o outro, trata-se de ameaça aos direitos reprodutivos das mulheres. Este artigo busca desvelar os argumentos, riscos e desdobramentos do PL 1904/2024.
O Projeto de Lei 1904/2024 reacendeu um dos debates mais intensos e polarizados da política brasileira: o aborto. Apresentado com a justificativa de proteger a vida desde a concepção, o texto propõe alterar significativamente o tratamento jurídico dado ao aborto no país, inclusive em casos já permitidos por lei, como o de gravidez resultante de estupro.
No centro da controvérsia está a aparente colisão entre a proteção da vida intrauterina e a criminalização potencial de mulheres em situação de extrema vulnerabilidade. A proposta gera indignação em setores da sociedade civil, organizações de direitos humanos e conselhos médicos, que veem nela um retrocesso civilizatório. Por outro lado, defensores da medida argumentam que se trata de um avanço moral e ético.
Este artigo se propõe a analisar de forma crítica o conteúdo do PL 1904/2024, seus impactos jurídicos, sociais e simbólicos, além de examinar os argumentos de ambos os lados. Em um momento de forte polarização cultural, compreender os desdobramentos desta proposta é essencial para um debate público qualificado e democrático.
O que prevê o PL 1904/2024
O Projeto de Lei 1904/2024 propõe alterar o Código Penal brasileiro para equiparar o aborto ao crime de homicídio, inclusive em casos atualmente permitidos pela legislação. O ponto mais polêmico é a penalização da interrupção da gravidez decorrente de estupro, quando realizada após a 22ª semana de gestação — prática legal, segundo orientações do Ministério da Saúde e decisões judiciais anteriores.
Entre os principais dispositivos do projeto estão:
Revisão do artigo 128 do Código Penal, eliminando a exclusão de ilicitude nos casos de aborto após 22 semanas, mesmo se resultante de estupro;
Previsão de pena de reclusão de 6 a 20 anos para médicos, profissionais de saúde e mulheres que realizarem o procedimento nesse contexto;
Ausência de diferenciação clara entre aborto e homicídio doloso, levando a interpretações rígidas, especialmente no caso de fetos com anomalias graves como anencefalia;
Impacto sobre os protocolos clínicos atuais, usados por hospitais públicos e privados que seguem diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde.
Atualmente, o aborto no Brasil é legal em três situações: risco à vida da gestante, gravidez decorrente de estupro e anencefalia. O projeto, no entanto, representa um endurecimento do marco legal, tornando a prática praticamente inviável em casos de violência sexual quando o diagnóstico gestacional ocorre tardiamente — o que é comum em vítimas infantojuvenis ou em situações de vulnerabilidade extrema.
Ao propor tais mudanças, o PL 1904/2024 altera não apenas a norma penal, mas também o entendimento jurídico, médico e ético sobre direitos sexuais, reprodutivos e a proteção à dignidade da mulher em situações-limite.
Argumentos a favor
Os defensores do PL 1904/2024 fundamentam sua posição na valorização absoluta da vida desde a concepção, propondo um endurecimento das regras penais como forma de coerência ética e moral. A base desse argumento é composta por pilares filosóficos, religiosos e jurídicos, que têm ganhado força nos setores conservadores da sociedade.
Defesa incondicional da vida:
A ideia de que o feto é uma vida humana desde a concepção sustenta a noção de que interromper essa gestação, mesmo em casos extremos, representa uma forma de homicídio. Para esse grupo, o Estado tem a obrigação de proteger a vida mais vulnerável — o nascituro — mesmo em contextos de violência como o estupro.
Moral religiosa e identidade cultural:
Lideranças religiosas e parlamentares alinhados afirmam que o projeto reafirma os valores cristãos da sociedade brasileira, em defesa da “família tradicional” e da sacralidade da vida. Essa argumentação inclui a visão de que o aborto, em qualquer forma, seria uma ofensa à ordem natural e divina, além de corromper os pilares morais da cultura nacional.
Dissuasão penal:
A imposição de penalidades rigorosas — inclusive para mulheres vítimas de violência — é apresentada como mecanismo de dissuasão. A lógica seria que, ao tornar o aborto um crime grave mesmo nos casos permitidos hoje, haveria um efeito preventivo, desestimulando a prática e sinalizando que “não há justificativa para a interrupção da vida”.
Em suma, os argumentos favoráveis ao PL se baseiam em uma perspectiva normativa rígida, com raízes no conservadorismo ético e religioso. Para seus proponentes, endurecer as penas é não apenas uma resposta penal, mas uma declaração simbólica de princípios e de resistência ao que consideram um avanço da permissividade cultural.
Argumentos contrários
Os críticos do PL 1904/2024 destacam que a proposta representa um grave retrocesso nos direitos civis e reprodutivos das mulheres, violando princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. Para juristas, organizações sociais e especialistas em saúde pública, os efeitos do projeto extrapolam o campo moral, interferindo diretamente na autonomia, dignidade e segurança das mulheres brasileiras.
Violação da autonomia feminina:
O cerne do argumento contrário é a imposição de normas que retiram das mulheres a capacidade de decisão sobre seu próprio corpo, especialmente em situações de violência. Criminalizar o aborto em casos já previstos em lei (como estupro) transfere o controle do corpo feminino ao Estado, rompendo com o princípio da liberdade individual.
Criminalização de vítimas e vulneráveis:
Ao prever pena de prisão para quem realiza aborto mesmo após estupro, o projeto inverte a lógica de proteção às vítimas. Em vez de garantir acolhimento e cuidado, mulheres — frequentemente menores de idade ou em situação de vulnerabilidade social — correm o risco de serem duplamente punidas: pela violência sofrida e pela resposta penal.
Comprometimento do direito à saúde:
O projeto desestimula o acesso a serviços legais de aborto e gera temor em profissionais da saúde, podendo causar omissão de atendimento por medo de responsabilização. Isso agrava os riscos de abortos inseguros, aumenta a mortalidade materna e desestrutura a lógica de saúde pública prevista na Lei 12.845/2013.
Insegurança jurídica:
O PL também desestabiliza a jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal Federal, que garante a interrupção da gravidez em casos específicos. A aprovação criaria conflito entre normas, ampliando a judicialização e colocando em dúvida os limites do que é legal ou não.
Esses pontos revelam que, além de ideológico, o projeto apresenta falhas práticas e jurídicas, com potencial para agravar desigualdades e violar direitos fundamentais, especialmente de mulheres já em condição de sofrimento extremo.
Repercussão legal e institucional
A proposta do PL 1904/2024 gerou reação imediata em diversos segmentos do sistema de Justiça e de proteção aos direitos humanos. A repercussão foi especialmente intensa entre entidades jurídicas, órgãos do Ministério Público, conselhos voltados aos direitos das mulheres e especialistas em Direito Constitucional.
Posições de entidades jurídicas e do MP:
Associações de magistrados, defensorias públicas e membros do Ministério Público manifestaram preocupação com a inconstitucionalidade do texto. O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e grupos de procuradoras alertaram para o risco de retrocesso em políticas de proteção a vítimas de violência sexual, além da fragilização da autonomia médica em atendimentos legais já consolidados.
Conselhos e órgãos de defesa dos direitos das mulheres:
Conselhos estaduais e municipais de direitos das mulheres criticaram o projeto por instituir, segundo eles, uma “criminalização da vítima” e por desconsiderar as garantias constitucionais ligadas à dignidade da pessoa humana. Muitos desses órgãos já articulam ações em parceria com defensorias e universidades para judicializar a questão caso o projeto avance.
Potenciais embates com o STF:
Especialistas apontam que o projeto confronta diretamente jurisprudências recentes do Supremo Tribunal Federal, que reconhecem o aborto legal em casos de estupro como direito garantido pela Constituição. A possível aprovação do PL pode gerar ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs), reacendendo o debate sobre os limites do Legislativo diante de cláusulas pétreas.
Omissões técnico-legislativas:
A tramitação acelerada e a ausência de audiências públicas com especialistas das áreas médica, jurídica e social também foram alvo de críticas. Para setores técnicos do Congresso, a falta de diálogo e escuta qualificada compromete a legitimidade do processo legislativo e fragiliza o princípio da razoabilidade legal.
Esse cenário reforça a tensão entre moralismo legislativo e controle jurídico-constitucional, colocando instituições centrais em rota de colisão e mobilizando esforços para contenção de danos à ordem legal e aos direitos fundamentais.
Impactos sociais e culturais
O avanço do PL 1904/2024 não apenas provoca efeitos jurídicos, mas reverbera de forma profunda no tecido social, especialmente entre os grupos mais vulneráveis. A proposta, ao buscar equiparar o aborto legal em casos específicos a homicídio, impõe camadas adicionais de estigmatização, vigilância e medo sobre as mulheres e os profissionais de saúde envolvidos.
Pressão sobre mulheres, médicos e o sistema de saúde:
A possível criminalização da interrupção legal da gestação em casos previstos na legislação atual — como estupro ou risco à vida — coloca em xeque a segurança das pacientes e o amparo institucional. Profissionais de saúde podem evitar realizar procedimentos com receio de implicações penais, o que resulta na precarização de um direito já difícil de acessar. Mulheres, por sua vez, enfrentam o peso do julgamento moral e jurídico, mesmo diante de circunstâncias traumáticas.
Efeitos nas classes vulneráveis:
Mulheres pobres, negras e moradoras de regiões periféricas tendem a ser as mais afetadas. A proposta desconsidera as desigualdades estruturais do acesso à saúde e à justiça. Enquanto mulheres com recursos podem recorrer a serviços seguros — muitas vezes em outros países —, as mais pobres são empurradas para soluções clandestinas, aumentando o risco de complicações e mortes evitáveis.
Narrativas midiáticas e identitárias:
O projeto também reativa narrativas simbólicas de “moralidade nacional”, nas quais o aborto é enquadrado como um atentado à identidade cristã e à “família tradicional”. Essa retórica, amplamente veiculada por influenciadores conservadores e canais religiosos, molda percepções públicas e desloca o debate do campo dos direitos para o campo das crenças. A padronização moral promovida nessas narrativas marginaliza visões divergentes e reforça estigmas sociais.
Em resumo, o PL 1904/2024, além de legislar sobre corpos femininos, atua como um instrumento de controle social e simbólico, tensionando princípios democráticos, autonomia pessoal e pluralidade cultural. Seu impacto, portanto, vai muito além da lei: atinge diretamente o modo como uma sociedade define justiça, compaixão e cidadania.
Cenários possíveis
O futuro do PL 1904/2024 permanece indefinido, mas é possível antever três caminhos principais, cada um com implicações jurídicas, sociais e institucionais distintas:
Aprovação integral:
Se aprovado tal como proposto, o projeto significaria uma inflexão drástica na legislação penal e sanitária brasileira. A equiparação do aborto legal à prática de homicídio alteraria a base de direitos reprodutivos e ampliaria a criminalização de mulheres e profissionais de saúde. Na prática, criaria um ambiente de insegurança jurídica, levando à redução de procedimentos em hospitais públicos, à judicialização de atendimentos e à fuga institucional diante da ambiguidade legal. O país poderia também ser alvo de questionamentos internacionais por violações de acordos de direitos humanos dos quais é signatário.
Emendas moderadoras:
Diante da pressão social e institucional, o texto pode passar por alterações que atenuem os dispositivos mais severos. Isso incluiria a retirada da pena equiparada ao homicídio, substituição por penas alternativas, ou cláusulas de exceção mais bem definidas. Embora isso possa representar um avanço em relação ao texto original, ainda manteria a tendência de limitação dos direitos reprodutivos e alimentaria a insegurança legislativa em torno da autonomia das mulheres.
Derrota judicial e legislativa:
Outro cenário possível é a não aprovação do projeto, seja por rejeição no plenário, seja por intervenção de órgãos como o STF. Essa hipótese poderia vir acompanhada de uma reafirmação dos precedentes legais já consolidados (como a ADPF 54, que trata do aborto em casos de anencefalia), reforçando o papel do Judiciário como guardião dos direitos fundamentais. Também pode gerar uma onda de revisão crítica sobre o papel do Congresso na regulação de temas sensíveis, estimulando maior participação da sociedade civil organizada e vigilância institucional.
Cada cenário aponta para um debate mais profundo: até onde o Estado pode legislar sobre decisões privadas sem romper com a Constituição, os direitos humanos e os princípios democráticos? A definição dessa resposta moldará, a longo prazo, o futuro da saúde, da cidadania e da equidade no Brasil.
Comparação com modelos internacionais
A análise do PL 1904/2024 ganha mais profundidade quando comparada a legislações internacionais. O Brasil, ao propor endurecimento nas regras para aborto legal — inclusive sob circunstâncias extremas como estupro ou inviabilidade fetal — caminha na contramão de uma tendência global de ampliação de direitos reprodutivos.
Modelos mais restritivos:
Na América Latina, países como El Salvador, Nicarágua e Honduras mantêm legislações extremamente rigorosas, com proibição total do aborto, inclusive em casos de risco de vida ou violência sexual. Essas políticas geram consequências severas: mulheres criminalizadas por emergências obstétricas, médicos intimidados e um sistema de saúde paralisado por medo de responsabilização penal. As Nações Unidas já classificaram tais legislações como violadoras de direitos humanos.
Cenários mais liberais:
Por outro lado, países como Uruguai, Argentina, Colômbia e México deram passos significativos nas últimas décadas, ampliando o acesso ao aborto seguro. Esses avanços foram acompanhados por campanhas públicas de conscientização, formação médica qualificada e controle social da política de saúde. A regulamentação clara reduziu mortes maternas e promoveu maior justiça reprodutiva, especialmente entre mulheres pobres.
Diferenças institucionais:
Enquanto modelos mais liberais se apoiam em ampla participação popular, embasamento técnico e jurisprudência constitucional robusta, os mais restritivos se ancoram em alianças político-religiosas e discursos morais absolutistas, muitas vezes descolados da realidade sanitária e jurídica.
Lições para o Brasil:
A experiência internacional mostra que legislações restritivas não impedem abortos, apenas os tornam mais inseguros. O que diferencia as nações é o grau de cuidado com a saúde pública, respeito às liberdades civis e a capacidade de equilibrar valores morais com direitos constitucionais. Para o Brasil, o risco está em repetir erros já condenados globalmente — e abandonar avanços conquistados com base em evidências, empatia e compromisso democrático.
Considerações finais
A tramitação do PL 1904/2024 representa mais do que um debate sobre aborto: trata-se de um teste institucional para a democracia brasileira, especialmente no que diz respeito à laicidade do Estado, aos direitos das mulheres e à autonomia dos indivíduos frente ao aparato legislativo. Ao propor penalidades severas — inclusive para vítimas de violência sexual —, o projeto parece se basear menos em evidências públicas e mais em dogmas morais de setores específicos.
A retórica de defesa da vida, embora legítima, deve ser equilibrada com a complexidade da vida real. Ignorar o sofrimento de vítimas, silenciar a diversidade de experiências femininas e desprezar a medicina baseada em ciência e empatia pode levar a retrocessos institucionais perigosos. O senso comum, muitas vezes moldado por discursos emotivos e simplificadores, precisa ser confrontado com dados, ética pluralista e respeito aos direitos fundamentais.
Por isso, é urgente que a sociedade civil participe ativamente: pressionando seus representantes, exigindo transparência no debate, defendendo políticas baseadas em direitos humanos e promovendo diálogo qualificado. A legislação que afeta corpos e trajetórias humanas não pode ser feita sob aplausos isolados ou gritos de guerra moral — ela exige escuta, equilíbrio e compromisso com a dignidade de todas e todos.




