Teologia do domínio no Brasil: quando fé busca moldar leis e ministérios

Puxe a cadeira, pegue um café e vamos direto ao ponto.

No Expresso Político de hoje vamos falar sobre a retórica religiosa ao campo legislativo: entenda como correntes evangélicas buscam moldar o Estado por meio de crenças teológicas.

A “teologia do domínio” é uma doutrina cristã que defende a ideia de que os fiéis devem exercer influência direta — e em alguns casos, soberania — sobre todas as áreas da sociedade, incluindo política, educação, cultura e economia. Baseada em uma interpretação literal do mandato bíblico de “dominar e sujeitar a terra”, essa corrente prega que é dever dos cristãos “tomar os sete montes” ou “esferas de influência” para estabelecer valores espirituais nas estruturas do Estado.

No Brasil, esse pensamento vem ganhando força à medida que o campo evangélico cresce eleitoralmente e se organiza de forma mais eficiente dentro das instituições. O avanço vai além da eleição de parlamentares ligados a igrejas: passa pela ocupação estratégica de ministérios, conselhos e órgãos públicos, com pautas que muitas vezes carregam forte conteúdo moral-religioso.

Este artigo se propõe a desvendar como a teologia do domínio está presente na arena política brasileira, influenciando a formulação de leis e a definição de políticas públicas. Sem recorrer a nomes individuais, buscamos entender o fenômeno como força coletiva e simbólica, analisando seus riscos, estratégias e implicações para a democracia e a laicidade do Estado.

O que é a teologia do domínio

A teologia do domínio, também conhecida como “dominionismo”, tem raízes no cristianismo reformado, especialmente em interpretações de passagens do Antigo Testamento que falam da missão humana de “dominar” a terra. Essa corrente teológica entende que os cristãos têm não apenas o direito, mas a obrigação de exercer influência direta sobre as instituições da sociedade — política, educação, mídia, economia, família, religião e artes — com o objetivo de submetê-las aos princípios bíblicos.

Seus defensores acreditam que a atuação cristã não deve se restringir ao espaço pessoal ou espiritual, mas deve moldar o espaço público com base em valores morais absolutos, considerados divinamente revelados. Esse pensamento ganhou força especialmente nas últimas décadas, com o movimento dos “Sete Montes”, que defende explicitamente o domínio cristão sobre sete pilares da sociedade.

Entretanto, é necessário distinguir influência legítima — comum em sociedades democráticas, onde qualquer grupo pode buscar representação política — da tentativa de controle institucional sistemático. A primeira ocorre quando valores religiosos inspiram a atuação cidadã e política, em harmonia com o pluralismo. A segunda se caracteriza por esforços organizados para subverter a neutralidade estatal, privilegiar um único credo e transformar princípios teológicos em políticas públicas normativas, o que desafia a laicidade constitucional.

Essa tensão entre fé e poder público está no centro da análise que faremos nas próximas seções.

Influência no ambiente legislativo

A presença de correntes religiosas no ambiente legislativo brasileiro não é apenas simbólica — é prática, organizada e, em muitos casos, determinante na formulação de leis. Deputados e senadores que se identificam com uma cosmovisão cristã conservadora frequentemente utilizam princípios teológicos como fundamento direto para sustentar projetos, especialmente em temas ligados à moral pública, costumes e direitos civis.

Pautas como a proibição do aborto, a criminalização da linguagem de gênero nas escolas, a exclusividade da educação moral baseada na Bíblia e a regulamentação de cultos e igrejas em situações de emergência são apenas alguns exemplos de iniciativas legislativas que têm como base o entendimento de que valores cristãos devem nortear a vida pública. Em muitos desses casos, argumentos religiosos foram explicitamente usados em plenário, com citações bíblicas e referências à vontade divina como justificativa política.

A atuação se dá, principalmente, por meio de frentes parlamentares religiosas, como a Frente Parlamentar Evangélica, que se autodenomina a “maior bancada temática” do Congresso Nacional. Essa frente age de maneira coesa, promovendo agendas conservadoras alinhadas com a teologia do domínio — muitas vezes ignorando ou rejeitando visões alternativas dentro do próprio campo cristão.

Esses parlamentares conseguem apoio técnico, midiático e eleitoral por meio de igrejas, influenciadores religiosos e redes digitais. A coordenação entre púlpito e parlamento não apenas mobiliza a base eleitoral, mas também cria um ciclo de retroalimentação onde a aprovação de leis com base religiosa fortalece ainda mais o capital político do grupo.

Casos recentes ilustram essa influência: projetos de lei que visam instituir o “Dia do Orgulho Hétero”, tornar a Bíblia patrimônio cultural imaterial, ou restringir o ensino de educação sexual em escolas são todos marcados por uma lógica que busca traduzir valores teológicos em normas legais. Essa tendência levanta debates sobre os limites do uso da fé como base para decisões que afetam uma sociedade plural e constitucionalmente laica.

Domínio em ministérios e instituições 🏛️

👥 Indicação de evangélicos em ministérios e órgãos públicos

O movimento de dominionismo se articula também por meio de indicações de evangélicos para cargos do Executivo. Durante a gestão de presidentes conservadores, figuras públicas com histórico religioso ocuparam ministérios ou órgãos estratégicos — como direito e família, educação e comunidades indígenas — criando um canal institucional para a teologia do domínio .

🗺️ Políticas públicas com fundamentação religiosa

A presença desses representantes no Executivo resultou em políticas com base ostensivamente religiosa, incluindo:

Apoio à expansão de comunidades terapêuticas evangélicas no âmbito da política nacional de drogas, via certificação e convênios do governo federal e legislativo .

Promoção de programas sociais e familiares com discurso moralista — por exemplo, “valorização da família” sem transparência técnica, mas apoiados por raízes teológicas .

⚠️ Tensões entre laicidade e agendas religiosas

Essas ações geram tensão direta com o princípio da laicidade constitucional. A submissão de políticas públicas a motivações confessionais representa risco de privilegiar uma fé específica, além de desafiar o impessoalismo estatal. O nome de cargos importantes sendo ocupados por pastores — inclusive no Supremo Tribunal — levantou debates sobre a neutralidade do Estado e a liberdade de crença .

✔️ Resumo

A teologia do domínio se fortalece no Executivo por meio de indicações estratégicas, políticas religiosas institucionalizadas e fundações de cunho confessionário. Esse domínio institucionalizado reforça a força do conservadorismo religioso, mas também agrava a tensão com o Estado laico, abrindo caminho para debates profundos sobre os limites entre fé e governança.

Narrativa utilizada 📣

A eficácia da teologia do domínio não se limita a inserções institucionais — ela se reforça por meio de narrativas estratégicas, fundamentadas em símbolos religiosos, nacionalismos conservadores e propaganda midiática.

🎯 Retórica do “mandato cultural” e “resgate moral”

A narrativa frequentemente invoca a ideia de um “mandato cultural” — missão divina que incumbiria os cristãos de restaurar o que consideram valores tradicionais, como família, moralidade e ordem social. Esse discurso convida os fiéis a retomarem o controle de sete esferas (família, educação, mídia etc.), a fim de garantir que a espiritualidade influencie todos os aspectos da vida nacional .

🏰 Apologia à “implantação do Reino” na terra

Frases como “tomar os sete montes” ou falar em “implantar o Reino de Deus na terra” remetem à ideia de um projeto político divinamente ordenado — em que os governantes são vistos como executores de desígnios espirituais, mais do que agentes públicos. O sentido é claro: não se trata de participação democrática, mas de cumprimento de um mandato transcendente .

📺 Uso midiático e simbólico para viralização

Missões, retiros, transmissões e “mega-encontros” têm sido amplamente divulgados por telejornais e nas mídias sociais. O uso de símbolos — como uniformes, cânticos de guerra espiritual e ícones bíblico-estatais — intensifica o efeito emocional e viral dessas mensagens. Assim, o sentido de comunidade ganhou alcance nacional, não somente em igrejas, mas como fenômeno sociopolítico .

✔️ Integração narrativa

A narrativa da teologia do domínio se articula a partir de três vértices: o discurso de resgate moral, a apologia à instauração do Reino por meios políticos, e uma estratégia midiática poderosa que transforma encontros religiosos em catálise para mobilização ideológica e cultural. Essa combinação faz do movimento mais do que um grupo religioso — ele se configura como um projeto político-religioso com estratégia institucional.

Críticas e riscos ⚠️

🏛️ Conflito com o Estado laico e neutralidade institucional

A teologia do domínio desafia o princípio da laicidade, pois promove a inserção de valores religiosos específicos nas políticas públicas. Quando o Estado passa a agir em nome de uma fé, corre-se o risco de privilegiar um grupo em detrimento de outros — o que contraria a ideia de que órgãos públicos devem servir a toda a população, independentemente de crenças religiosas.

🔄 Vulnerabilidade à captura partidária ou confessionária

Movimentos religiosos com forte articulação institucional são suscetíveis à co-gestão com partidos políticos ou correntes confessionárias. Isso pode levar à ocupação de ministérios como estratégia para influenciar decisões em favor de interesses doutrinários, diminuindo a transparência e dificultando a responsabilização governamental.

🌍 Reflexos sobre minorias religiosas e pluralidade social

A preponderância de uma narrativa dominante compromete a equidade democrática. Se as políticas públicas e discursos oficiais estiverem orientados por uma única cosmovisão religiosa, outras tradições — como religiões de matriz africana, minorias religiosas e até mesmo visões seculares — podem ser colocadas em segundo plano, resultando em tensão social, simbólica e, em alguns casos, institucional.

✔️ Síntese

A teologia do domínio, quando mobilizada em níveis de poder institucional, apresenta três desafios fundamentais:

Tensiona a estrutura laica do Estado, promovendo favorecimento religioso;

Está sujeita à captura política, minando a transparência e pluralidade;

Pode prejudicar a convivência democrática, se ignorar a multiplicidade de identidades religiosas e visões de mundo.

Reflexões institucionais e cívicas 🧭

⚖️ Influência legítima vs. domínio teológico

Em uma democracia plural, é natural que agentes públicos tragam consigo valores morais e religiosos. No entanto, é fundamental distinguir entre influência e imposição. A influência legítima se dá quando princípios pessoais moldam posturas éticas, sem comprometer o funcionamento técnico das instituições ou a universalidade das leis. Já o domínio teológico ocorre quando a estrutura do Estado é instrumentalizada para fins doutrinários, afetando diretamente a formulação e execução de políticas públicas.

🧾 Transparência em nomeações e políticas

O caminho para evitar abusos passa pela transparência na nomeação de cargos e na formulação de políticas. A população tem o direito de saber:

Quais critérios técnicos estão sendo usados para designar ocupantes de ministérios ou fundações;

Se decisões públicas estão sendo baseadas em evidências ou interpretações religiosas;

Como garantir que o interesse público esteja acima de dogmas privados.

Esse monitoramento constante reforça os mecanismos de accountability democrático.

🧑‍⚖️ O papel do Judiciário e da sociedade civil

Frente à expansão de pautas religiosas em espaços institucionais, cabe ao Judiciário assegurar o cumprimento da Constituição, que estabelece o Brasil como Estado laico. Julgamentos sobre leis ou políticas públicas contaminadas por doutrinação religiosa devem ser feitos com base no princípio da neutralidade e da isonomia.

Já a sociedade civil organizada tem papel crucial em:

Denunciar excessos e retrocessos legais;

Mobilizar debates públicos sobre laicidade;

Promover educação cívica plural nas escolas e redes sociais.

✔️ Conclusão parcial

Manter o equilíbrio entre fé e política exige vigilância institucional, participação cidadã ativa e respeito à diversidade religiosa. A teologia do domínio só prospera em ambientes onde há opacidade e apatia. Portanto, a defesa do Estado democrático de direito também passa por proteger a pluralidade de consciências.

A análise da teologia do domínio no Brasil revela um fenômeno em crescimento que ultrapassa os limites da representação legítima. Quando valores religiosos se transformam em instrumentos de controle institucional, abrem-se precedentes perigosos para a democracia e para o equilíbrio entre os poderes.

A presença de lideranças evangélicas em cargos estratégicos, a influência sobre políticas públicas e a construção de uma retórica de “resgate moral” evidenciam uma estratégia coordenada de ocupação religiosa do espaço político. Embora todo cidadão, religioso ou não, tenha direito à participação, é essencial garantir que a estrutura do Estado não seja moldada para servir a uma única visão de mundo.

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